sábado, 23 de fevereiro de 2013

Presente de Deus


Durante muitos anos, Walderez Cavalcante evitou tocar no assunto. Primeiro, por não conseguir falar sobre o drama vivido quando pequena. Mais tarde, quando, enfim, se sentia um pouco mais à vontade para lembrar o episódio, não tinha coragem de comentar com ninguém, pois temia ser tachada de louca. Afinal, como explicar o fato de uma criança, com quatro anos de idade, ter sobrevivido de um naufrágio em alto-mar, boiando por horas dentro de uma caixa de transporte de leite condensado vazia?
Carla, uma das filhas de Walderez, conta que evitava mencionar o episódio vivido pela mãe com amigos e colegas porque, por mais verdadeira que fosse, a história sempre soava fantasiosa. “Ninguém acreditava”, admite a médica. “Se a gente tentasse falar para alguém, eles davam risada.”
O fato de ter se formado em Psicologia, em Maceió, ajudou Walderez a superar parte do trauma. Às vezes, ela até pensa em visitar Valença, a cidade que a acolheu, da qual não tem quase nenhuma lembrança, mas desiste: “O que eu iria dizer quando chegasse lá?”, diz a ex-psicóloga. “Ia sair dizendo que fui salva de um naufrágio dentro de uma caixa de leite condensado? Ia parar no hospício.”
A imagem da pequena Walderez Cavalcante, com toda a aura de dramaticidade que envolveu o seu salvamento, foi usada pelo governo de Getúlio Vargas como forma de chamar a atenção da população para a brutalidade dos ataques alemães, justificando, dessa forma, a entrada do Brasil no conflito mundial. O seu retrato era a própria imagem do Brasil, vítima da covardia nazista.
Ao rever a foto do Itagiba na capa de um jornal da época, ela se emocionou, cobriu a imagem e lamentou: “Ainda me lembro daquele apito (do navio). Horrível. Foi como um último grito antes da morte.”

(Trecho de reportagem publicada no jornal Diário de S.Paulo, em 27/3/2011)

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